Mas luto, luto todos os dias. E da minha posição de branca, precária e instável, percepcionada como cis*, num país em crise e com machismo abundante, eu, reconheço-me como privilegiada. Tive acesso a uma educação superior, a um sistema financeiro que me permitiu pedir quando precisava. Não tive dias de fome, e os de aperto que tive foi maioritariamente por má gestão minha. Tive acesso a trabalhos, mais ou menos precários, de copas a secretárias, passei por vários sítios com a consciência do temporário por estar par a par a lutar por um projecto meu. Porque podia. As duplas jornadas que fiz foi por desorganização ou leves períodos de muito trabalho e não por ter a meu cargo uma família, filhos, marido e pressão.
Vivo num país onde posso abortar, protegida e não acusada pela lei desde 2006, mesmo com alguns profissionais com preconceitos e sectores políticos que me querem retirar o que é meu por direito.
Cresci numa família que me ensinou a perante todos os géneros ter uma voz paritária, cresci, cresço, rodeada de pessoas fortes que não tiveram medo, ou que o enfrentaram bem, de desafiar as curtas convenções sociais que lhes impunham e de reclamarem o seu lugar e direito a existir perante o mundo. Sinto isso em debates, quando não me acanho e “falo tanto e tão alto como qualquer homem”. A minha opinião foi-me ensinada como mais do que permitida, importante.
Agradeço a todxs as que lutaram pelos direitos que tenho hoje consagrados. Celebro-os todos os dias, ao exercê-los.
Rodeio-me de redes de afectos, dentro e fora do activismo, que também é feito com muito mimo e amor, que me dão forças para ser auto-determinada, fiel aos meus princípios e atenta. Atenta aos privilégios que tenho e aos que me foram negados. Atenta à linguagem que utilizo e ao que faço de forma a contribuir para um mundo mais justo. Atenta e agradecida pelas várias correcções que me vão fazendo uma pessoa mais completa.
Mas a minha política, reservo-me o direito de a fazer com raiva. E como poderia ser de outra maneira, se já não tenho dedos das mãos para contar histórias de violações e abusos sexuais de mulheres ou pessoas trans ditas em nome próprio. Se já são incontáveis as histórias de violência física de amigxs, das mães, da peixeira que se senta ao meu lado na estação de Gaia e me conta o quanto apanhava do primeiro marido, das demasiadas postagens em grupos de apoio em redes sociais dos namorados ou maridos que insultam, batem, humilham… Das que são denegridas dentro da própria casa, isoladas, desacreditadas como se o único destino possível fosse o suicídio.
Enraivece-me que seja um privilégio chegar aos 33, como eu, sem nunca ter sido psicologicamente ou fisicamente abusada, batida, violada.
Enraivecem-me as mulheres sem saída, as irmãs e irmãos trans que todos os dias são mortas ou se matam e cuja esperança média de vida é digna da Idade Média.
Enraivece-me um mundo onde a masculinidade tóxica faz vítimas em todas as barricadas. Onde um gay só pode ser macho e normativo, porque as bichinhas estão mais próximas daquilo que consideramos feminino, e o feminino ainda é reprovável. Dão-me raiva os apupos constantes, o assédio de rua que tivemos que esperar até 2016 para que fosse considerado crime, perante sectores políticos que ainda acham que é um exagero esta queixa de sair à rua e sentir constante risco de vida.
Enraivecem-me a falta de representatividade e de voz, que as histórias de sucesso sejam histórias de sucesso, casos excepcionais e não a regra, a diferença salarial e a dupla jornada. E a distribuição de riqueza? Como se explica um mundo onde um género em tantos países ainda carrega nas costas demasiado trabalho e tão pouca riqueza.
Enraivece-me que não se reconheça que há um problema com trabalho e capitalismo. E que precisamos de garantir condições de base iguais a todos. Reconhecer o trabalho sexual como trabalho, porque está lá, quer fechemos os olhos ou não e distingui-lo de tráfico humano e escravatura que são feitos quer nos bordéis quer nas fábricas de roupa que meio mundo, onde com pena me incluo, veste, calça e consome. Enraivecem-me os casamentos e as miúdas que são vendidas, os corpos que são mutilados e os tantos corpos que continuam a ser controlados por um estado, uma igreja ou um mercado.
Enraivece-me tudo isto e mais, correndo o risco de ser esganiçada, descontrolada, histérica, digo-vos, não vou parar de gritar enquanto não pararmos de ser mortxs. Enquanto precisarmos de estar com um homem para não estar sozinhas. E como eu, há muitxs. Porque no meio disto, chamando-me o que quiserem, sou apenas mais uma, e pequena, LUTADORE.
*cis ou cis-género – uma pessoa cujo género assignado à nascença corresponde à identidade de género que vive.