IVG em tempos de COVID – Um depoimento por Alice

‘Bebés Corona’ não serão uma consequência de algumas pessoas virem a ter mais sexo em quarentena, mas vão ser uma consequência do facto de muitas mulherxs verem impedido o seu direito ao aborto seguro durante o confinamento: uma história do meu aborto durante a pandemia do Covid-19.

Era fevereiro de 2007 e eu estava prestes a fazer doze anos quando a interrupção voluntária da gravidez foi despenalizada em Portugal. Menstruei pela primeira vez no verão anterior, numa viagem de autocarro entre Lisboa e Albufeira. Vi o meu primeiro período na casa de banho de uma gasolineira algures no Alentejo, e com aquela mancha, a realização do potencial reprodutivo do meu corpo. Nunca, desde essa altura, me lembro de ter desejado reproduzir.

Nos meses que se seguiram, campanhas a favor e contra a despenalização do aborto inundaram os órgãos de informação. Várias gerações de mulheres à minha volta começaram a falar abertamente das suas experiências pessoais com gestação indesejada e aborto ilegal. Pedi à minha mãe para a acompanhar à urna no dia do referendo. Lembro-me do sentimento generalizado de alívio entre as mulheres da minha família com a vitória do sim. Tinham passado trinta e três anos desde a revolução de 1974.

Treze anos depois, no dia 30 de Janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde declarava a pandemia do COVID-19 como Emergência de Saúde Pública Internacional. Um mês e meio mais tarde, à meia-noite do meu vigésimo-quinto aniversário o Presidente da República Portuguesa Marcelo Rebelo de Sousa declarava Estado de Emergência. Eu estava grávida há oito semanas, e há cinco num processo moroso, confuso e extenuante de tentativa de acesso a uma interrupção da gravidez segura e atempada pelo Serviço Nacional de Saúde.

Nos últimos anos tenho vivido na Holanda, que em 1984 se tornou um dos primeiros países da Europa a legalizar a IVG. Com um período de tolerância alargado – até às 21 semanas de gestação versus as 10 semanas em Portugal – o acesso ao aborto na Holanda é reconhecidamente rápido, seguro e de acesso universal. Igualmente, muito devido à minha vivência dos discursos em torno do referendo, sempre confiei que o acesso em Portugal funcionasse de forma semelhante. Nunca tinha ouvido depoimentos do contrário. Este ano por exemplo, no aniversário da despenalização, a deputada do PS Isabel Moreira orgulhava-se de declarar no Parlamento que ao contrário das ansiedades da Direita, as percentagens de abortos realizados em Portugal tinham decrescido progressivamente desde 2015. Que nos podíamos orgulhar de como o acesso seguro e universal ao aborto até às dez semanas eliminou a terceira maior causa de morte em mulherxs, o aborto clandestino. Estas declarações tranquilizavam-me quanto à possibilidade de eu, ou outra mulhxr perto de mim ter de recorrer um dia à IVG em Portugal.

A realidade com que me deparei foi, no entanto, bastante diferente.

Semana 3 – O Centro de Saúde

Descobri que estava grávida na mesma semana em que o período me faltou. Nesse mesmo dia contactei o meu Centro de Saúde que me encaminhou para a médica de família.

Dois dias depois, no consultório, a médica informa-me e ao meu companheiro que o meu pedido seria transferido para o Hospital de Santa Maria. E que do hospital poderiam demorar até duas semanas a contactar-me. Fiz as contas: em duas semanas estaria na quinta semana de gestação, metade do prazo legal. Não estava psicologicamente apta a esperar tanto tempo. Acreditava que se expusesse a urgência psicológica da minha situação, o processo seria certamente acelerado. Nessa tarde telefonei para o hospital a insistir na brevidade de uma ecografia e foi-me marcada para a mesma semana.

Semana 4 – A Ecografia 

No Hospital de Santa Maria eu e o meu companheiro estamos há cerca de uma hora a aguardar para que eu seja chamada. As paredes cinzentas estão decoradas com posters e panfletos dirigidos a mulherxs em processos de gestação desejados. Um poster mostra várias perspectivas ecográficas de um feto desenvolvido, e nas extremidades lê-se “os nossos bebés são tão fofos”. Nada indicava que naquela mesma sala de espera, todas as quartas e sextas-feiras, se sentariam mulherxs a gestar involuntariamente. A questão aqui não seria tanto porquê juntar debaixo do mesmo teto mulherxs que desejam a gestação com outras que não a desejam. O problema prende-se pela displicência com que o departamento de Obstetrícia de um hospital público, com este gesto aparentemente inocente, trata as mulherxs que não querem gestar como uma inconveniência, e moraliza a sua decisão por vias indiretas–sobrevalorizando a decisão de mulherxs com gravidezes desejadas. Para não falar de desresponsabilização: estas imagens de glorificação da gravidez e reprodução serão certamente passíveis de causar extremo transtorno psicológico a mulherxs que procurem a IVG, que para as quais, ao contrário de mim, a decisão de interromper a gravidez não seja tão linear, que poderiam desejar uma gravidez não fosse por impedimentos socioeconómicos, emocionais ou outros.

A ecografia foi rápida. O médico não conseguiu detetar o embrião, mas o saco gestacional confirmava a gravidez. “Vai ter de voltar a fazer a ecografia. Só quando o embrião for visível é que vamos poder saber se a gravidez é evolutiva. E só com esse avalo poderá avançar para a IVG. Volte em duas semanas.” Saí com um nó no estômago. Pensava no caso que conhecia de uma amiga na Holanda que tinha feito uma interrupção medicamentosa segura na quarta semana de gravidez. Não me foi oferecido apoio psicológico como previsto por lei.

Antes de comparecer ao Santa Maria tinha lido as diretrizes da Direção Geral de Saúde em relação à Interrupção Voluntária da Gravidez: uma consulta prévia deveria sempre ser o primeiro passo do processo, logo após, e idealmente no mesmo dia em que a mulhxr faz a primeira ecografia. É nesta consulta que a utente deveria ser inteirada em relação ao processo de IVG de modo a tomar uma decisão informada. Nesta consulta seriam discutidos quais os passos que se iriam seguir no processo, os timings dos mesmos e seria oferecido apoio psicológico se requisitado. Sem ter tido acesso a nada que se parecesse, saí do hospital ansiosa e às escuras. Como eu, certamente outras dezenas de mulherxs.

Num desses dias que me pareceram demasiado longos, telefonei para o meu seguro de saúde na Holanda. Não cobravam despesas de IVG noutros países e aconselharam-me vivamente a voar de volta para Amsterdão para realizar a interrupção.

Semana 6 – A segunda ecografia

Duas semanas mais tarde voltámos à sala de espera com as fotos de bebés não solicitadas. Dentro do consultório pedi para que não me mostrassem imagens da ecografia. Acederam. Estava a gestar há exatamente seis semanas e um dia e a gravidez seria evolutiva. Depois de desentendimentos com a secretaria, a consulta prévia de IVG, que friso, deveria ter sido o primeiro passo do processo, foi-me finalmente marcada para a semana seguinte: “mas vai ter de ser logo às oito e meia da manhã, é a única vaga que temos”.

Semana 7 – A consulta prévia de IVG

Nessa manhã de quarta-feira, chegados à secretaria de Obstetrícia informam-nos que a minha consulta tinha sido adiada. “Têm-nos chegado muitos casos de gravidezes muito mais avançadas do que a sua. Temos de prioritizar. A sua consulta foi remarcada para a semana”. Protestámos. Ainda que solidária para com outras mulherxs em situações mais avançadas, insisto para ter a consulta nesse dia. As consequências da má de gestão de recursos do hospital não deveria recair sobre as utentes. Disseram-me que fosse “lá abaixo falar com a enfermeira”. Nós fomos. Depois de expôr a minha situação a enfermeira aceita fazer-me a consulta. Já usava máscara protetora.

“A ecografia acusou seis semanas e um dia, por isso agora estará com…”

“Sete semanas e dois dias.”

“Exatamente. Já esteve grávida antes?”

“Não.”

Depois de me guiar e ao meu companheiro pelas várias opções contraceptivas hormonais, passou a explicar-me o processo de IVG. No Santa Maria só praticavam interrupções medicamentosas. Tomaria um comprimido no hospital e outro em casa. Ia sangrar e era possível que tivesse dores fortes semelhantes a cólicas menstruais.

A enfermeira informou-me que as IVGs no hospital normalmente só aconteciam na nona semana de gestação. Só tinham uma médica deslocada para IVG. “E eu sou a única enfermeira a fazer estas consultas. Se uma de nós adoecer com o vírus não sei como vai ser”. Uma médica que se ocupava também com as urgências de obstetrícia. Uma enfermeira que assistia com tudo o resto no departamento.

A IVG foi-me marcada para dia 30 de Março, no limite da minha décima semana de gestação. Exausta, expliquei que estava já há um mês a tentar interromper a gravidez. Que era inadmissível que me atirassem para o limite legal. A enfermeira compreendeu mas não havia nada a fazer. Quando saí do consultório uma fila de mulherxs esperavam pela mesma consulta. Uma rapariga jovem, certamente abaixo dos 20 anos, aproximou-se para me perguntar se eu sabia se faziam a interrupção nesse mesmo dia. Ninguém lhe tinha explicado os passos do processo e estava na ignorância.

As fronteiras tinham fechado oficialmente nessa semana e voar para a Holanda já não era uma opção. Assustados com as notícias da propagação do vírus na Europa e em Portugal eu e o meu companheiro começámos a considerar a possibilidade de reiniciar o processo no privado. Sabíamos que a Clínica dos Arcos realizava 75% das IVGs em Portugal. Lá respeitavam os prazos previstos por lei e poderia fazer a IVG mais cedo. Marcámos consulta para essa mesma semana.

Semana 8 – O privado

Para evitar o contágio pelo Covid-19 a Clínica dos Arcos não permitia que as mulherxs entrassem acompanhadas. Ao contrário do Hospital de Santa Maria, só estavam a praticar IVGs cirúrgicas, consideradas mais eficazes, de modo a evitarem que as mulheres tivessem de voltar à clínica. No dia anterior tinha sido declarado Estado de Emergência. Todas as trabalhadoras da clínica usavam máscara e era-me pedido que desinfetasse as mãos antes de tocar no que quer que fosse.

O processo foi o que eu sempre esperei do serviço público: a ecografia, as análises de sangue e a consulta prévia de IVG aconteceram no mesmo dia, tudo no prazo de uma hora. Perguntei à médica que me aconselhou nesse dia se a clínica estava em risco de fechar. “Não sabemos. Honestamente ontem pensei que sim. Hoje já estou mais convencida que não. Vamos ver. No entanto se alguém do nosso staff adoecer teremos de encerrar”. Marcou-me a IVG para 3 dias úteis depois, respeitando a obrigação legal do período de reflexão. Segundo a lei nº 16/2007, não podem passar mais de 5 dias desde que a mulher requisita uma IVG e a consulta prévia. No hospital público tive de esperar três semanas.

Semana 9 – A Interrupção

Com hospitais em que quase todos os médicos ginecologistas são objetores de consciência em relação à IVG, ou mais grave ainda, objetores de consciência não declarados, o Hospital de Santa Maria acaba por comportar todos os casos da Grande Lisboa. Quando o Santa Maria não consegue comportar o número de utentes que se vê obrigado a afunilar no limite do prazo legal, estas são encaminhadas para a Clínica dos Arcos a custo do próprio Hospital. Isto, num contexto normal, sem a ameaça de uma pandemia global. A situação da IVG em Portugal ecoa os problemas sistémicos do Serviço Nacional de Saúde: o Estado faz uma escolha determinada de investir dinheiro, por vias secundárias, no privado ao invés de contratar profissionais de saúde para o público. Prefere restringir utentes ao Hospital de Santa Maria em vez de contratar médicos e enfermeiros não objetores de consciência para fazerem consultas de IVG noutros hospitais da região.

No dia da interrupção, uma amiga conduziu-me e ao meu companheiro até à porta da clínica. Eu tive de entrar sozinha e esperar para ser chamada. Tinha requisitado uma IVG cirúrgica com anestesia total, mas no momento de pagar a intervenção – uns 475€, que ao contrário de muitas mulheres gozo do privilégio de poder despender – informaram-me que devido ao fecho de fronteiras tinham esgotado as anestesias gerais e que não havia perspectiva de quando as voltariam a receber. Aceitei permanecer consciente durante o procedimento.

Fui chamada. A anestesia local era forte e adormeceu-me completamente. Acordei na sala de recuperação, ao lado de outras mulherxs. Não sentia dores. O enfermeiro informou-me que o procedimento tinha corrido muito bem e ofereceram-me um sumo da Compal. Tive alta dez minutos depois e x minhe companheire veio buscar-me à clínica para irmos para casa.

O Rescaldo 

Durante as semanas em que soube que estava grávida só partilhei o assunto com o meu companheiro, umx amigxs em Lisboa e duas amigas na Holanda. Embora soubesse que tanto a minha família como xs minhxs amigxs seriam encorajadorxs e carinhosxs não queria que ninguém me lembrasse que estava grávida. A percepção da relação parasitária que estava a acontecer no meu corpo contra a minha vontade foi provavelmente o processo mais violento por que passei a nível metabólico, psicológico e político.

Nos dias antes de abortar, comecei a contactar várias pessoas e entidades, a informar do estado priclitante da IVG num Portugal em Estado de Emergência. Contactei a editora deste blog que ofereceu apoio imediato e me propôs que escrevesse este texto. Contactei o Bloco de Esquerda que encaminhou o meu depoimento ao Parlamento de imediato. E escrevi à deputada Isabel Moreira, que não só me respondeu como contactou a Ministra da Saúde no mesmo dia. Agradeço a todxs a urgência com que agiram perante o meu depoimento: a IVG foi declarada como urgência médica pelo Ministério da Saúde três dias antes de eu realizar a minha intervenção. Simultaneamente, cada vez mais notícias começaram a surgir de mulherxs que, tanto na Europa como nos Estados Unidos, estavam a ver restringido e muitas vezes impedido o seu direito ao aborto legal e seguro. No que respeita estes casos, as medidas de contenção contra o Covid-19 são uma desculpa ideológica e não uma consequência imunológica.

O que significa uma política de saúde pública que decide quais as ameaças imunológicas para um corpo, em detrimento de outras? Em menos de três meses, a calamidade planetária causada pela pandemia do vírus do Covid-19 foi capaz de recentrar políticas globais no corpo e na saúde das comunidades. Não será então a imposição biológica e reprodutiva da mulhxr, alimentada por bio-políticas patriarcais, que continuamente mata, estigmatiza e criminaliza milhares de mulherxs em todo o mundo, também uma emergência de saúde planetária histórica?

Nas primeiras semanas de isolamento social na Europa e nos Estados Unidos, li vários comentários online que previam um boom de natalidade depois do período de quarentena. Corona babies. Assumia-se que vários casais – assumidamente heterossexuais – teriam mais tempo para fazer sexo e consequentemente reproduzir. Há muitos problemas com esta assunção, desde a fantasia do regresso triunfante da família nuclear depois do apocalipse, à associação de sexualidade a sexo heterossexual e reprodutivo. Mas um ponto em particular assombrou-me, como um fantasma: a normalização do que seria a dificuldade ou impossibilitação de acesso ou a contracepção ou a aborto seguro durante uma crise de saúde pública. Uma gravidez indesejada seria um mal menor e uma consequência esperada do que muitxs chamam o apocalipse. Mais uma vez parece-me importante lembrar que o fim do mundo já aconteceu várias vezes, e que se perpetua, de forma sistémica, durante a vida de muitos corpos.

Alice

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